Contos
Um conto de Dante
Luiz dos Santos Preza
Nuvens de tempestade se formavam no céu era um verão qualquer. Ele estava lá, no centro de lugar nenhum, desolado. Ninguém poderia acompanhá-lo nessa jornada porque ninguém mais havia naquele lugar intermédio. Um homem fora engolido pelo vazio da escuridão. Sentia apenas o cheiro da terra já úmida e quente. Naquele lugar não havia portas ou janelas, porque ele não conseguia encontrá-las. Também não havia música nem som de qualquer espécie. Nem tempo parecia existir. - Há quanto tempo estou aqui? perguntava à beira do abismo, naquele lugar.
Aterrorizado, o homem apalpava os braços, o rosto e o tronco, como um cego em busca de uma resposta - era real. Pensou nas pessoas e nas coisas suas. Relutava aceitar que nada havia à sua volta. Suspeitava haver algo de religioso que explicasse aquele lugar. Mas o céu era apenas a laje do teto que mais parecia um mapa marcado por manchas escuras de intensidade variável cortadas por filamentos que formavam veios por onde escorria o líquido que pingava e formava poças no chão. Uma profunda sensação de angústia cercava aquele homem e invadia o vácuo que o habitava. Ele então chorava com a máscara das mãos sobre a face. A desolação o cercava por todos os lados, naquele lugar.
Então um fino raio de luz riscado no espaço descolou suas pálpebras pesadas. Através desse traçado luminoso, um torvelinho de partículas microscópicas gravitava a sua frente, lentamente, no ar. O homem pôde então enxergar as paredes cinza do lugar, muito sujas e dilapidadas, por onde escorriam os lívidos veios líquidos. Dessas paredes começaram a surgir imagens natimortas, como pinturas abortadas - uma folhinha pendurada, do ano de 2015, tinha os dias riscados. Fotografias sem cor, pontilhadas por fungos, curvavam-se sobre os cacos de vidro presos às molduras desarranjadas. Faltavam os ponteiros em um relógio, e abaixo dele havia a inscrição: a máquina se dobra ao silêncio do tempo que não se conta em folhinhas - o tempo cantado pelos poetas. Um punhado de molduras vazadas por recordações.
- Preciso de mais, muito mais. A noite não pode cair sem que eu encontre uma saída em pânico, ele murmurava com a garganta seca palavras vazias que ecoavam pelos blocos maciços de alvenaria. O homem fechara os olhos, mas as imagens não o abandonaram. Ele se sentia confuso e impotente. Havia uma mesa e sobre ela pratos com marcas ressequidas de alimentos, utensílios entortados envoltos em trapos, garrafas vazias e um cesto de pão ao lado de maçãs que gravitavam sobre a toalha de tecido branco descida até o chão, como numa natureza-morta pintada por Cézanne. O homem perdia a perspectiva como se estivesse preso pelos grilhões que na Idade Média serviam para imobilizar os condenados nos muros das prisões até à loucura e à morte. O homem se esforçava para se livrar daquele museu de horrores, mas não sabia como. Ele ainda tentou se levantar e ir ao encontro da liberdade, mas se sentiu fraco e com a visão escura. E caiu.
Ao recobrar os sentidos, o homem viu que continuava lá, naquele lugar nenhum. Ele se viu nu, vestido apenas com meias brancas. Sentiu nojo de sua condição, nojo de si mesmo e de tudo que sua memória permitia-lhe lembrar. Ele fez um grande esforço para ficar de pé. Olhou para os pés, apoiou-se numa parede e ergueu a perna esquerda para tirar uma das meias. Ao retornar para fazer o mesmo com o outro pé, percebeu que a meia que supunha ter tirado, de fato continuava lá, no pé esquerdo. Não compreendia o que estava acontecendo. Então tentou tirar a meia do pé direito. Ao pisar com os dois pés, sentiu um tecido grosso separa-lhe do chão frio ainda calçava o par de meias. E tentou retirá-las mais uma vez. E outra. Mas novamente elas voltavam, uma para cada pé. E por mais que executasse a mesma tarefa, retirar as meias dos pés, neles elas permaneciam.
Não havia clareza em seu pensamento. O homem então viu uma velha porta de metal amparada em outra porta de madeira de forma que ambas criavam uma angulosidade mínima. O homem viu naquela brecha a única possibilidade de liberdade. Dela vinha o fino raio de luz que lhe permitia vislumbrar todos aqueles objetos. O homem percebera que ao se movimentar o fio de luz se expandia. E já não era o caso de uma ilusão. Apoiando-se nos objetos pelo caminho, as malditas meias nos pés, ele ergueu a cabeça e viu o teto cada vez mais próximo, comprimindo-o, opressor, a caminho de esmagá-lo, como uma prensa. A agonia parecia não ter fim.
E antes que o homem pudesse enfim chegar à fonte luminosa, a imagem de uma mulher vestida com uma túnica escura como a noite surgiu a sua frente, e ele pôde vê-la com toda a nitidez, e ela não era nem bela nem feia. O homem sentiu o traço de luz se expandir mais e mais pela ínfima nesga aberta entre as portas. A misteriosa mulher apontava para o lugar e ainda restava alguma força ao homem. Enquanto caminhava na direção apontada, o mundo de sombras se dissipava e com ele os vestígios de uma existência. Tudo parecia estar numa velocidade absurda e passava na cabeça do homem como um filme mudo acelerado. Imagens difusas eram acompanhadas por uma trilha sonora em rotação descompassada. E antes que o homem pudesse alcançar a saída, um perfume gardênia espalhou-se pelo lugar. Então a mulher se ajoelhou diante dele caído, amparou sua cabeça em seus braços e com o olhar terno e compadecido murmurou ao ouvido.
Desde então, com a escuridão esvanecida, o homem pode enfim sair e olhar para o céu irreconhecível. Ainda era cedo.
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